A aplicabilidade do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor às relações médico-paciente reputa-se tema objeto de debates na doutrina e na jurisprudência, mormente por se tratar o médico de profissional liberal, que, em tese, não é alcançado pelo CDC.
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A prestação de serviços a que se refere o caput do artigo 3º, in fine, da Lei 8.078/90 é toda aquela destinada ao consumidor, definido no artigo 2º do mesmo diploma legal, qualquer pessoa que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
As relações médico-paciente são de consumo, tanto porque o médico efetivamente presta um serviço, a exemplo do advogado, do dentista, ou da companhia de telecomunicações, como porque, do outro lado, está o paciente, que é o destinatário final da prestação de serviços médicos, que, em última análise, se prestam à manutenção e melhoria de sua saúde, motivo pelo qual pode ser classificado como consumidor.
Entretanto, no trato médico-paciente, inexiste a prática usual da formalização dessas relações, de forma a amoldá-las ao Código de Defesa do Consumidor.
Os motivos são vários e aqui cabe, apenas, especular, em linhas gerais, acerca de alguns deles, que contribuem para que reine a informalidade nas relações jurídicas aqui tratadas.
O primeiro motivo conjectura-se, é a força da própria economia de mercado, que, para além de ser a principal fonte de criação e normatização dos próprios direitos do consumidor, tornou-se a vilã das relações interpessoais no comércio e na prestação de serviços. Assim, impelidos pela dinâmica de mercado e pelo elevado custo de vida em uma economia na qual viceja o consumismo, médicos e pacientes, no interregno temporal de três décadas, assistiram sua relação, que era quase familiar, diluir-se no pragmatismo superlativo dos dias de hoje.
Vieram os planos de saúde, criados para suprir a deficiência do sistema público e salvaguardar a justa remuneração dos profissionais da medicina. A seguir, veio a crise dos planos de saúde e a nova lei a eles referente, tratando de direitos e obrigações bem dispostos em contratos. Em meio a essas mudanças, arfante, a relação médico-paciente tentava acompanhar os novos rumos da sociedade e do mercado.
Mas a velocidade com que a malha de planos de saúde se estendeu sobre o sistema nacional de saúde não foi acompanhada pelas relações diretas entre médicos e pacientes, que só lograram percorrer a metade do caminho necessário à sua plena adequação à nova realidade social.
O mercado exigiu mais médicos especialistas, assim como mais laboratórios e hospitais. Formaram-se verdadeiros nichos de mercado também na medicina - sinal dos tempos.
As consultas, em sua maioria, por força de cláusulas e pactos de credenciamento de médicos constantes dos planos de saúde, tornaram-se mais breves. Os médicos, diante desse quadro, passaram a se entrincheirar em nesgas de especialidade, fazendo com que uma consulta completa passasse, necessariamente, de um especialista a outro e, no meio desse trâmite, por laboratórios.
Responsabilidades foram repartidas e grandes profissionais surgiram desse novo modelo especializado de se praticar a medicina.
O paciente, pari passu, foi perdendo o contato com o chamado médico da família (que é, inclusive, objeto de recente projeto governamental para promoção da volta do modelo). O consumidor dos serviços médicos passou a conviver com uma miríade indistinta de profissionais, envolto nas cláusulas complexas dos planos de saúde, que indicavam um médico credenciado aqui e um reembolso ali.
O trato com os doutores transmudou-se em mais uma entre tantas relações jurídicas da vida contemporânea. Mas persistiu algo do passado milenar desse trato outrora tão pessoal: o respeito por aquele que, em última análise, é quem trata da saúde do paciente.
E é dessa aparente dicotomia entre a prestação de serviço médico profissional a um consumidor, natural dos tempos atuais, e a reverência àqueles que praticam a nobre profissão, que emerge a inadequação das relações médico-paciente aos ditames da lei 8.078/90.
Nesse passo, por conta da admiração secular aos profissionais da medicina, por vezes, as partes não se preocupam em enquadrar sua relação jurídica aos termos da lei. Esquecem-se, em nome do continuísmo da tradição, que, em realidade, é cristalina a relação de consumo existente entre si. Médico e paciente ignoram, em muitos casos, destarte, que se deve, necessariamente, obedecer a certas regras, que são diuturnamente desrespeitadas, não obstante o flagrante caráter consumeirista desse tipo de prestação de serviço, às escâncaras reiterado a cada consulta abreviada e mais comprometida com o manual de cobertura a normativa dos planos de saúde.
Um bom exemplo do desrespeito aos mais basilares princípios de Direito do Consumidor reinante nessas relações médico-paciente é o da ausência de um prévio orçamento para a prestação dos serviços médicos. É comum que o paciente recorra a um hospital ou consultório e só se tome conhecimento da dimensão da fatura de seu tratamento após a efetivação do serviço, em franco desrespeito ao que preceitua o artigo 40, do Código de Defesa do Consumidor, que é expresso ao dispor que o fornecedor de serviço será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento bem como as datas de início e término dos serviços.
Outro exemplo importante é o dos pacientes que se submetem a uma cirurgia em hospital ou clínica. Invariavelmente, após a cirurgia, materializa-se a conta do anestesista, que, em muitos casos, causa espanto ao combalido consumidor, que de nada foi informado adequadamente. É que o anestesista não integra a equipe médica. É à parte. Esse exemplo aponta para a necessidade de prévia e detalhada informação ao consumidor/paciente, para que não se incorra em novo desrespeito à norma do parágrafo 3º do mesmo artigo de lei já citado, que dispõe: o consumidor não responde por quaisquer ônus ou acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros, não previstos no orçamento prévio. Nesse caso, não só não se apresentou prévio orçamento, como ainda se incluiu item não previsto contratualmente.
Mas há casos ainda mais agudos de desrespeito à lei. O dever de informação do prestador de serviços, previsto no artigo 6º, II, da lei 8.078/90, é objeto de questionamento ético constante, mormente quanto à questão da necessidade de se esclarecer ao paciente acerca de sua real condição de saúde versus a praxis centenária de poupá-lo do impacto de uma má notícia.
Como se vê, as questões nesse campo das relações jurídicas entre médico e paciente são múltiplas e o seu enquadramento à lei consumeirista salta aos olhos dos que procuram refletir além das tradições, entendendo que a transformação iniciada por força da mudança na sociedade deve continuar, para amoldar-se, definitivamente, à nova realidade, submetendo-se aos termos da norma de direito positivo, em benefício de ambas as partes e em prol da transparência de que deve reinar nas relações de consumo em geral.
Há que se adotar a salutar prática da elaboração de contratos, para que, finalmente, a adequação à realidade jurídica atual alcance as relações médico-paciente, completando-se o ciclo virtuoso, em compasso com a contemporaneidade, porque, a despeito das ressalvas aos profissionais liberais, a lei consumeirista deve servir como inspiração para a adequação a uma situação que, em última análise, pode ser traduzida como prestação de serviços.
* Eduardo Dietrich e Trigueiros é advogado da Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados Advogados, formado pela PC/SP, e mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos.
Email: eduardo.trigueiros@silveiraadvogados.adv.br